quarta-feira, 10 de agosto de 2011
Decisão da 3ª Vara Federal de Belo Horizonte
DECISÃO DA 3ª VARA FEDERAL DE BELO HORIZONTE:
"O Ministério Público Federal ajuíza a presente Ação Cautelar, contra a União Federal, com amparo na Lei 7.347/85, que regulamenta a Ação Civil Pública, e também com base na Lei nº 8.078/90, que dispõe sobre a proteção do consumidor, objetivando resguardar a ocorrência de dano a milhares de brasileiros, ressaltando que, dentre sua competência constitucional, se inclui a proteção dos direitos individuais indisponíveis, difusos e coletivos da família e da criança.
Narra que foi instaurado, no âmbito da Procuradoria da República em Minas Gerais, o Inquérito Civil Público n.1.22.000.002267/2011-80, com o escopo de apurar eventual possibilidade de se proibir extrajudicialmente a veiculação, em todo o território nacional, do filme "A Serbian Film".
A investigação se deu em razão da exposição de cenas que simulam a participação de recém-nascido em cena de sexo explícito e pornografia e de outras em que se simula a participação de menores de idade em cenas de sexo explícito, dentre outras cenas de barbárie, selvageria e crueldade.
Aduz que a Procuradoria da República em Minas Gerais expediu recomendação à Secretaria Nacional de Justiça para que proibisse a exibição ou veiculação do "A Serbian Film" ou, alternativamente, suspendesse o processo de análise classificativa do referido filme, até que autoridade competente do executivo ou do judiciário se manifestasse sobre o tema.
Diz que, em resposta, o Secretário Nacional de Justiça informou que os órgãos a ele vinculados não têm competência para aferir o cometimento de crime e que não há competência estabelecida para regular a comercialização, proibir a veiculação, impedir acesso, cortar ou sugerir cortes em obras que classifica. No entanto, determinou a suspensão da classificação da obra até que a Consultoria Jurídica do Ministério da Justiça se pronunciasse sobre a recomendação.
Afirma que, em 05 de agosto de 2011, recebeu comunicação do CONJUR/MJ no sentido de que o Ministério da Justiça não tem competência para proibir filmes e que isto somente pode ocorrer por decisão judicial.
Argumenta que, no caso presente, a atuação jurisdicional estará suprindo a negação da proteção devida pela Administração às crianças e aos adolescentes.
Destaca, ainda, que a eventual proibição da obra cinematográfica em comento não constitui ofensa ao princípio constitucional da liberdade de expressão, pois a Constituição estabelece que a dignidade da pessoa humana deve ser assegurada e determina que a produção artística deve respeitar valores éticos e sociais da pessoa e da família.
Salienta que o controle sobre os meios de comunicação tem fundamento na mesma Constituição que garante os direitos das crianças, dos adolescentes e dos consumidores e assegura os princípios da dignidade da pessoa humana e da moralidade.
Além disso, argumenta que a Administração Pública, ao permitir a exibição do filme em referência, estaria permitindo a prática do crime tipificado no art. 241-C da Lei 8.069/90. Com estes fundamentos, o MPF pede, em sede de liminar, que seja determinado à União Federal que proíba a veiculação e/ou a exibição do filme "A Serbian Film - Terror sem Limites", em todo o território nacional.
É o breve relatório. Decido.
Para deferimento da medida liminar, necessaria se faz a ocorrência simultânea dos requisitos consubstanciados no periculum in mora e nofumus boni juris.
Pois bem. O pedido cautelar formulado nos autos, de proibição da exibição no território nacional, do filme "A Serbian Film - Terror sem Limites" é a um só tempo delicado e instigante, pois exige do juiz o exame de normas e princípios constitucionais, os quais a princípio mostram-se conflitantes à vista da pretensão deduzida em juízo.
De um lado, com inegável intensidade e importância, despontam: o princípio que consagra a livre manifestação do pensamento, art.5º, IV, da CF e o que determina a livre expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença, art.5º, IX, da CF. Aliás, não são raras as vezes que o STF tem afirmado que no Brasil de hoje o que prevalece como regra matriz é a liberdade de expressão e pensamento, característica nuclear de Estado, como o nosso, que se proclama soberano, democrático e plural.
Do lado oposto, há o princípio fundamental da dignidade da pessoa humana, art.1°, III, da CF, e o que determina ao Estado, à família e a sociedade, o dever de assegurar aos jovens e adolescentes direitos fundamentais, básicos da pessoa humana, art. 229 da CF. Há também o que prestigia e ampara o consumidor, art.5º,XXX,II,CF.
Em casos assim, onde surge o conflito de normas de estatura constitucional, não absolutas, é verdade, deve o JUIZ examinar as peculiaridades, as circunstâncias de cada caso concreto e avaliá-las com redobrado cuidado.
Deve identificar os pontos de atrito, ou seja, de onde surge a tensão entre as normas. Somente assim o magistrado poderá formar adequadamente o seu convencimento, evitando ser atraído pelo subjetivismo e cair na vala da censura, odiosa prática administrativa, criada sob o manto da aparente legalidade no passado, que o legislador constituinte baniu do ordenamento nacional desde 1988, elevando o país à condição de Estado Democrático de Direito.
No caso, não há dúvida de que os termos da petição inicial e os documentos a ela anexados, impressionam e demonstram que algo de errado se passa com o filme "A Serbian Film". Algo que em um exame inicial se mostra excessivo, anormal ou em desconformidade com o ordenamento jurídico. Não se trata apenas de referências constantes à vilania ou crueldade do ser humano, truculência e cenas de sexo. Não é isto. Para essas situações, a Secretaria de Justiça, vinculada ao Ministério da Justiça, faz bem o seu papel ao proclamar a recomendação da faixa etária própria a cada filme. Ou seja, mesmo que certo filme seja constituído de cenas fortes de violência e sexo, mas não havendo atritos entre a liberdade de expressão e outros cânones constitucionais, o Estado age apenas de maneira preventiva, orientando a sociedade, a família, acerca das características da película e o limite etário que merece ser tutelado.
Digo que algo está estranho com o filme" A Serbian Film" em razão dos termos do parecer subscrito pelo Coordenador de Classificação Indicativa da Secretaria Nacional de Justiça, do Ministério da Justiça, mediante o qual aquela autoridade, reconhecendo a possibilidade de existência de crimes relacionados a menores, relega o fato a um segundo plano e autoriza a exibição, com a classificação de proibido para menores de 18 (dezoito) anos.
Assim está posto no aludido Parecer (f. 39/40 dos autos do Inquérito Civil Público 1.22.000.002267/2011/80, em apenso):
"De acordo com o relatório técnico e quadro resumo da análise, com exceção das menções a 'sexo explícito' constantes nos documentos, a obra apresentada não é do gênero pornográfico, mas apresenta uma ficção metalingüística, cuja trama explora os bastidores da produção de um filme supostamente pornográfico, que representa uma visão deturpada de estímulo sexual, em que atos bárbaros de violência são apresentados como manifestações artísticas com fins de estímulos sexuais.
Este vínculo complexo entre violência e sexo, envolvendo inclusive menores de idade (a filha adolescente de uma atriz de filme pornográfico, o filho criança do protagonista da obra e um recém-nascido), apresenta, por si só, a limitação de acesso da obra para menores de idade. No entanto, a informação de que o filme apresenta sexo explícito pode causar confusão e não ser a melhor forma de informar a sociedade sobre os conteúdos da obra em tela. Ao meu ver, as cenas realistas de práticas de sexo podem ser catalogadas como sexo explícito apenas se forem consideradas como simulações, ficando mais próximas de serem consideradas 'relações sexuais não-explícitas' agravadas com exposição de cena. Há de se expor, no entanto, que ambas as catalogações podem ser consideradas na faixa de classificação de 'não recomendada para menores de 18 anos'. Especificando o envolvimento dos menores de idade no filme, é
possível inferir que os mesmos são incluídos no filme de forma simulada, estando envolvidos na produção da obra em cenas de sexo explícito/pornografia não diretamente, mas através da metalinguagem apontada tanto no relatório técnico como no segundo parágrafo acima.
Posto isto, sugiro que:
a) "A Serbian Film - Terror sem Limites" seja classificado como "não recomendada para menores de 18 anos", por apresentar estupro de crianças, banalização e glamourização da violência, crueldade e sexo;
b) que o processo, após publicação no Diário Oficial da União, seja encaminhado para os órgãos competentes para verificar a possível prática criminosa na exibição do filme, conforme o disposto na Lei 11.829, de 25 de novembro de 2008, que alterou o Estatuto da Criança e do Adolescente, Lei 8.036/90;
c) que no despacho de classificação indicativa a ser publicado no Diário Oficial da União conste que a decisão passará a entrar em vigor em trinta dias, a fim de que haja tempo hábil para ciência e manifestação dos órgãos competentes.
Junte-se ao processo administrativo matérias jornalísticas e noticiosas acerca da polêmica envolvendo o filme em outros países.
Encaminhe-se o presente Processo Administrativo ao Diretor Adjunto do Departamento de Justiça, Classificação, Títulos e Qualificação."(negritei)."
Ora, tratando-se de um filme que traz consigo a marca da polêmica, já deflagrada inclusive em outros países, sobretudo em razão da alegada cena na qual um recém-nascido é violentado sexualmente, como afirmado na inicial, creio que a decisão da Administração de classificar e liberar a exibição do filme, ainda que elegendo um prazo de 30 (trinta) dias para que os órgãos competentes verifiquem a possível ocorrência de crime, subverte a ordem natural e lógica do que é razoável.
Simultaneamente, viola a legalidade, pondo em risco iminente toda a sociedade. Passados os 30 (trinta) dias e não feitos os controles devidos, o certo é que o filme estará disponível à coletividade.
Pelo princípio da supremacia do interesse público não pode o Administrador relegar para o segundo plano a correta aplicação da lei, ou seja, deixar para examinar a legalidade do ato em outro momento que não aquele que atenda ao interesse público na sua plenitude. Ora, se determinado produto posto no mercado, ainda que proveniente do exercício constitucional da produção artística, pode em tese revelar um ilícito criminal, como nas hipóteses tipificadas como crimes na Lei n° 11.829/2008, deve a Administração ter o cuidado de examiná-lo sob todas as categorias jurídicas e em toda a sua extensão, antes de liberá-lo aos consumidores. O direito à saúde, como é cediço, é multifacetado e está atrelado à dignidade do ser humano, sobretudo no que toca aos padrões de moralidade e bem-estar social. Daí emerge a fumaça do bom direito a autorizar agora a concessão do provimento liminar.
Por outro lado, caso não concedida a ordem neste momento, graves e irreversíveis serão os prejuízos causados à ordem jurídica, ao consumidor nacional, tendo em vista o fato de que o filme será encaminhado aos cinemas do país e exibido a toda a população.
De resto, cabe-me destacar que a concessão da liminar não se configura, como pode parecer à primeira vista, indevida intromissão do Poder Judiciário no modo de agir da Administração, o que consistiria em abominável ato de censura. Não. De forma alguma é o que estou fazendo. O provimento judicial constitui, outrossim, resposta a pedido de controle judicial, formulado por quem de Direito, no uso de competência constitucional, no âmbito de um processo cautelar, com razões juridicamente relevantes e cuja finalidade é tão somente resguardar a utilidade do provimento final a ser proferido na ação principal, isto é, na ação civil pública, instrumento jurídico de índole constitucional.
Nesses motivos, tenho para mim que a circunstância de que, ao menos em tese, a exibição comercial da película em apreço constitui a prática do crime tipificado no art. 241-C da Lei 8.036/90 é suficiente para se determinar, com amparo no Poder Geral de Cautela previsto no art. 798 do CPC, a suspensão da exibição do filme "A Serbian Film - Terror sem Limite" em todo território nacional, o que faço autorizado pelo art.l02 do Código de Defesa do Consumidor, até que a Ré adote as medidas administrativas cabíveis junto aos órgãos competentes para a verificação se o filme em questão incorre em alguma modalidade criminal a que se refere a Lei n° 11.829/2008, independentemente do prazo de 30 (trinta) dias, trazendo aos autos as manifestações definitivas das instâncias administrativas competentes.
Cite-se, pois, a Ré, intimando-a da presente decisão, para cumprimento imediato, sob pena de fixação de multa diária, e para juntar aos autos, no prazo de contestação, cópia integral do Processo Administrativo SNJ/DEJUS/COCIND 08017.002624/2011-55.
Em seguida, dê-se ciência ao MPF desta decisão.
Cumpra-se com urgência.
P.RJ.
Belo Horizonte, 09 de agosto de 2011.
RICARDO MACHADO RABELO
Juiz Federal da 3ª Vara - MG
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