sexta-feira, 5 de agosto de 2011

O poder do judicário; a liberdade de produção intelectual e a defesa da criança e do adolescente - texto de Marco Aurélio dos Reis Corrêa

O advogado Marco Aurélio dos Reis Corrêa me enviou esse texto muito esclarecedor que usará de base logo mais no debate de hoje às 20:30 no Galpão Cine Horto, em Belo Horizonte.

Aproveito para agradecê-lo por todo o apoio que tem nos dado.

Leia o texto transcrito na íntegra abaixo e em seguida veja o documento em si:


O PODER DO JUDICIÁRIO; A LIBERDADE DE PRODUÇÃO INTELECTUAL E A DEFESA DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE

A suspensão, por ordem judicial, da exibição do filme sérvio SERBIAN FILM – Terror sem limites coloca em debate algumas questões essenciais:

• Um filme – por retratar uma realidade, seja na forma de documentário, seja na forma de ficção – pode ser proibido?
• O retrato da realidade – que nos move do pensamento à ação – é capaz de ferir o direito de proteção assegurado à criança e ao adolescente?
• Um juiz pode tudo? Exerce o absolutismo?

Meu irmão, Mauro Lúcio, cineasta, logo após a proibição, deferida liminarmente (no início do processo, após uma rápida leitura do que foi pedido pelo Partido Político Democratas) me consultou sobre o que poderia ser feito no tocante a esta proibição.

Disse a ele para iniciar um movimento contra a censura, envolvendo os principais interessados: as pessoas que trabalham com a produção artística.

E também que buscasse contato com a OAB-RJ e com os organizadores da mostra de cinema e com seus advogados.

De sua consulta, formalizada por email, pincei a seguinte frase:

“O filme parece ser bem violento (tem cena de pedofilia etc, etc). Mas é um filme político. Filme sérvio. E é uma ficção, uma alegoria: a criança sérvia, de acordo com o diretor, é o povo sérvio (diante da guerra).”

Ou seja, a guerra seviciou o povo sérvio – o que é a dura realidade! Dura, mas realidade!

Luís Antônio Giron, editor da seção Mente Aberta de ÉPOCA, publicou artigo sobre o filme e a polêmica no endereço http://revistaepoca.globo.com/Revista/Epoca/0,,EMI253962-15230,00.html e afirmou:

O problema é complexo, porque entram em jogo a lei brasileira, a visão estrita das autoridades jurídicas, o preconceito de um partido conservador e a tolerância do público perante certas manifestações cruéis e pornográficas. A suspensão do filme se deu por pressão do DEM. O partido acusou o filme de incitação de pedofilia, com base em uma investigação feita pelo Ministério Público Federal em Minas Gerais. O inquérito civil foi encaminhado ao ministério. Na sexta-feira, 29 de julho, o filme foi proibido em todo o território nacional por ferir o Estatuto da Criança e do Adolescente.
A maior parte das cenas, inclusive a ominosa sequência do bebê, foi feita com bonecos, com prostéticos mecatrônicos, como dizem os cineastas. Ora, não passa de um filme, nada mais que um filme... e muito ruim. O diretor afirmou que sua intenção é denunciar os horrores que a Guerra dos Bálcãs impuseram a seus habitantes no passado recente. Uma boa desculpa para exibir um circo de horrores.

No blog do Dr. Victor Travancas, advogado do Democratas, há interessante debate que trago para este texto:

Ronaldo Passarinho: Ao contrário do dr. Victor Travancas e de quem ele representa, eu assisti ao filme e sei que é uma produção artisticamente defensável, tanto pela reflexão que provoca sobre os limites da violência no cinema quanto por seus méritos estritamente cinematográficos. INFELIZMENTE, porém, o Estatuto da Criança e do Adolescente não faz distinção entre as cenas que proíbe. A lei é clara e diz que é proibido “Simular a participação de criança ou adolescente em cena de sexo explícito ou pornográfica por meio de adulteração, montagem ou modificação de fotografia, vídeo ou qualquer outra forma de representação visual”.

Ronaldo Passarinho: Portanto a exibição de “A Serbian Film” pode, sim, vir a ser proibida no Brasil, como já aconteceu em muitos outros países. É lamentável que uma liminar tenha sido concedida por quem não assistiu ao filme para alguém que admite não ter assistido ao filme agindo em nome de quem certamente não assistiu ao filme. Lei é lei, mas há leis que precisam ser discutidas e revisadas. O Estatuto da Criança e do Adolescente é uma delas.

Ocorre que o filme, definitivamente, não faz apologia à violência e, muito menos, à pedofilia.

O filme – que, a propósito, eu não escolheria para ver em meus parcos momentos de lazer – traz ao debate – na forma superlativa – a violência ocorrida na Sérvia.

Este é o conteúdo e o propósito do filme.

Este conteúdo e propósito é que devem receber tratamento jurídico.

Há um jogo larga e lamentavelmente difundido entre as crianças e os adolescentes, chamado GTA que é criminoso, já que as crianças e adolescentes encarnam um bandido que, através do videogame, vai praticando crime após crime e a vitória é obtida com a maximização dos crimes cometidos.

Este jogo, sim, deve ser proibido, apreendido, pois é apológico ao crime. Não traz qualquer reflexão sobre a violência e, ao contrário, banaliza o crime, apresentando-o como coisa normal e desejável, pois proporciona a vitória. É UM JOGO ALTAMENTE DANOSO À FORMAÇÃO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE.

O filme, recebendo a classificação para maiores de 18 anos, NÃO SERÁ – EM CONDIÇÕES LEGAIS E NORMAIS – ASSISTIDO POR NENHUMA CRIANÇA OU ADOLESCENTE, PORTANTO, LEGALMENTE, É INCAPAZ DE CAUSAR QUALQUER DANO A ALGUMA CRIANÇA OU ADOLESCENTE.

E, ainda que seja assistido, de forma clandestina, por alguma criança ou adolescente, poderá chocar, mas não incentivará a prática do crime, seja o estupro, seja a pedofilia.

Esta é a diferença.
Importa, para o debate, termos claro que estamos diante da aplicação de artigos do Estatuto da Criança e do Adolescente que definem algumas condutas como crime.
Considerando que nenhuma criança ou adolescente participou do filme, já que as cenas questionadas tiveram robôs como protagonistas, o único artigo aplicável seria o 241-C:

Art. 241-C. Simular a participação de criança ou adolescente em cena de sexo explícito ou pornográfica por meio de adulteração, montagem ou modificação de fotografia, vídeo ou qualquer outra forma de representação visual: (Incluído pela Lei nº 11.829, de 2008)
Pena – reclusão, de 1 (um) a 3 (três) anos, e multa. (Incluído pela Lei nº 11.829, de 2008)
Parágrafo único. Incorre nas mesmas penas quem vende, expõe à venda, disponibiliza, distribui, publica ou divulga por qualquer meio, adquire, possui ou armazena o material produzido na forma do caput deste artigo. (Incluído pela Lei nº 11.829, de 2008)
Do ponto de vista da produção cinematográfica o filme não tem o conteúdo de incitação à prática do sexo. Não é um filme pornográfico.

Sobra, então, para imputar ofensa à lei a cena de sexo explícito.

Ocorre que este artigo 241-C se direciona à conduta de se trabalhar com fotografia, vídeo ou outra forma de representação visual que, originalmente, não tem qualquer conotação sexual e, mediante artifícios, simular que a criança estaria praticando o ato proibido. O artigo coíbe o estelionato visual, o que não ocorre no filme. Portanto, este artigo não é aplicável.

É o caso, por exemplo, de alguém baixar uma foto de algum site de relacionamentos pessoais e adulterar a foto, simulando a prática sexual.

Aqui estamos diante do Direito Penal. Considero uma violência muito mais grave imputar a alguém a prática de algum crime inexistente do que produzir um filme com cenas que retratam a dura realidade ou que são utilizadas alegoricamente para traduzir a dura realidade.

Para se configurar um crime é necessário muito mais do que gostar ou não gostar de um filme. É preciso avançar a análise para além da percepção a respeito de um filme contemplar, ou não, a minha ideologia, a minha crença, a minha convicção pessoal.

Alguém produzir uma música de que eu não gosto não é crime! Crime é agir de maneira intolerante, abusiva e autoritária contra quem produziu a música da qual não gosto!

Voltando ao artigo de Luiz Antônio Giron, reproduzo o que ele afirmou:

“Vamos e venhamos: apesar de tudo, Spasojevic não é um criminoso. Ele não matou nem estuprou nem fez estuprar ninguém. Caros juízes e desembargadores, o diretor apenas encenou sevícias, não as praticou. É preciso distinguir realidade de ficção. É preciso absolvê-lo.”

O filme, como dito, é uma ficção, tal qual foi uma ficção o LARANJA MECÂNICA, também chocante.

No campo jurídico a ação civil pública movida pelo partido político Democratas recebeu, como dizemos nós, os advogados, “data venia” (expressão latina que serve para um sujeito brigar com o outro dentro da mais fina educação e que em português significa “dada a licença”) tratamento superficial.

Não tenho certeza, mas conhecendo o desumano volume de processos judiciais a cargo de cada magistrado brasileiro, duvido que as decisões de concessão da liminar e de negativa de sua suspensão tenham sido precedidas da assistência ao filme.

Penso que, no limite da lei, caso fosse de fato aplicável o art. 241-C, ou que, de fato, o filme incitasse a prática de crimes, a única medida admissível seria determinar A SUPRESSÃO DAS CENAS COM AS ALEGADAS SIMULAÇÕES DA PARTICIPAÇÃO DAS CRIANÇAS EM CENAS DE SEXO EXPLÍCITO OU PORNOGRÁFICAS.

Mas nunca a suspensão da exibição do filme.

Nesta hipótese nem seria censura. Mas, sim, uma medida voltada para impedir a prática do que poderia configurar um crime.

E é aí que entra o outro ponto do debate (que não será trabalhado neste artigo).

Na reunião do SINDAD-MG – Sindicato dos Advogados de Minas Gerais, ocorrida no dia 19.07.11, recebemos denúncia de que alguns bancos estariam financiando o estudo de bacharéis de direito para o fim de obterem aprovação em concursos para o Ministério Público e a Magistratura.

A denúncia é grave e merece apuração.

Não por se tratar de crime, pois tal conduta não o é. Qualquer pessoa física ou jurídica pode financiar o estudo de quem bem entender.

Mas é moralmente questionável, politicamente criticável e chama a atenção para a importância da Magistratura e do Ministério Público na vida de todos nós, como vemos acontecer neste episódio da volta à censura!

Uma coisa é o inegável fenômeno sociológico de que a maioria dos membros do Poder Judiciário e do Ministério Público é composta de pessoas das classes econômicas mais privilegiadas pela razão óbvia de que suas condições de estudo são infinitamente superiores às condições das massas trabalhadoras.

Outra coisa é um planejamento estratégico para alocação de pessoas comprometidas com os interesses econômicos dos grandes bancos em setores de tanta importância para a realização da Justiça.

Toda a mobilização política pelo fim da Ditadura Militar focou seus principais esforços para a eleição de representantes dos setores democráticos e progressistas nos Poderes Executivos e Legislativos. Mas nunca se discutiu, de forma sistemática, a composição elitista tanto do Poder Judiciário quanto do Ministério Público.

Aproveitemos este episódio do SERBIAN FILM para refletirmos!

Termino com uma frase do artigo de Luiz Antônio Giron, que parafraseando Voltaire, afirmou: Senhor Srdjan Spasojevic, seu filme me repugna e me revolta, mas vou lutar até o fim por seu direito de exibi-lo a quem quiser vê-lo. Só não me convide para a sessão...

Marco Aurélio dos Reis Corrêa - Advogado








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